domingo, 5 de dezembro de 2010

Dicionário Histórico-Biográfico do(s) Anarquismo(s) no Brasil

Anarquismo reconstruído

Dicionário histórico-biográfico reconta a história deste movimento no Brasil

O espanhol José Romero desembarcou no Brasil em 1890, aos dois anos de idade, aqui estabeleceu residência durante 29 anos, teve filhos e trabalhou como operário têxtil. Edgard Leuenroth, filho de farmacêutico alemão, nasceu no ano de 1881, em Mogi-Mirim (SP), trabalhou como menino de escritório, balconista, aprendiz de tipógrafo e jornalista. O professor José Oiticica era brasileiro, nasceu em 1882, na cidade de Oliveira, Minas Gerais, foi também poeta, teatrólogo e filósofo. Estes três homens têm muito em comum, além do fato de terem vivido no mesmo momento histórico. Eles compartilharam idéias e valores: fizeram parte do chamado movimento anarquista, que se desenvolveu no Brasil nas primeiras décadas do século XX.
Estes são apenas alguns, entre as dezenas de personagens que terão suas minibiografias registradas no Dicionário histórico-biográfico do anarquismo(s) no Brasil, obra que está sendo preparada a partir dos resultados de estudos sobre o anarquismo no Brasil, coordenados pela professora Jacy Alves de Seixas, da Universidade Federal de Uberlândia.
Por meio da atuação dos militantes, o trabalho desvenda os caminhos e as peculiaridades do movimento no país.
O anarquismo nasceu na Europa, em meados do século XIX, junto com o marxismo e outras correntes socialistas.
O movimento, que tem como princípio a luta de classes e a ação direta, teve seus antecedentes em alas radicais da Revolução Francesa e ganhou força a partir da Revolução Industrial, com o desenvolvimento do capitalismo. Os anarquistas defendem a ausência de governo, a liberdade individual e a igualdade social, razão pela qual combatem fortemente o capitalismo. “Desde o início, o anarquismo era um questionamento da representação política, o poder de falar e agir não devia ser delegado. Esse é o principal ponto em que diverge do socialismo”, explica Jacy Seixas.
No Brasil, seu surgimento, nas primeiras décadas do século XX, coincide com um momento de grande imigração, com a explosão demográfica, a criação dos bairros operários e o emprego da mão-de-obra livre no desenvolvimento da economia cafeeira e da indústria incipiente. “Queremos reabrir a discussão sobre o primeiro movimento operário no Brasil, que é o anarquista”, constata a professora.
Os estudos sobre o anarquismo no país são, segundo os organizadores do dicionário, ainda insatisfatórios.
A historiografia aponta uma visão estreita, que tende a mostrá-lo como um movimento que não passou de uma utopia de começo de século, que não conseguiu alcançar de maneira suficiente os meios operários e perdeu apoio popular, sucumbindo perante o Estado. O trabalho propõe, por meio de registros da época, uma nova forma de ler essa página da história, partindo dos personagens que dela participaram. “Valorizamos cada indivíduo que fez parte daquele momento e que, por meio das pesquisas, pôde ser localizado, e não apenas dos líderes e os que obtiveram maior destaque”, conta. A idéia é registrar experiências e perfis anarquistas para mostrar o movimento, abrindo possibilidades de novas pesquisas.
Uma das visões que o estudo desconstrói em relação ao anarquismo é a de que ele seja uma idéia externa à realidade brasileira, pregada por uma minoria de militantes que vinham de outros países. A identificação com imigrantes era, na época, inclusive uma maneira de desqualificar o movimento. Segundo a pesquisadora, não se pode minimizar a contribuição do estrangeiro na construção das manifestações operárias brasileiras, ainda mais considerando sua presença efetiva na formação das próprias classes proletárias, mas os registros mostram que os militantes não eram apenas imigrantes, muitos eram brasileiros e vinham, sobretudo, do movimento republicano. Os ativistas apresentam múltiplos perfis, que contribuem para a construção do anarquismo. Alguns iniciam desde a juventude seu engajamento, outros aderem já na maturidade, a partir do contato com a literatura libertária, ou com a realidade dos trabalhadores, incluindo tanto militantes que vieram de outros países, quanto pessoas nascidas ou que se formaram, politicamente, no país.
Além disso, o anarquismo prezava, independentemente de nacionalidade, a luta dos trabalhadores contra o sistema capitalista. Assim, o envolvimento dos imigrantes nas questões sociais não estaria vinculado à sua origem, mas à sua inserção na sociedade brasileira e ao desejo de transformação social.

Cultura Nacional

O discurso anarquista opunha-se diretamente aos valores do capitalismo, a toda atitude e estilo de vida que fossem associados a valores “burgueses”. No Brasil, essa oposição manifestava-se em relação ao catolicismo, ao baile, ao futebol e às bebidas alcoólicas.
Jornais e outros registros da época mostram que o anarquismo, como movimento social e político, consegue penetrar no Brasil e desenvolve, no país, características próprias. Os anarquistas atuam não apenas por meio da divulgação dos ideais libertários, mas organizam um expressivo sindicalismo e associações diversas, como ligas de inquilinos, de bairro, grupos de teatro, centros de estudos, entre outras. “Além de comícios e greves, eles criam vias de convivência, como centros de cultura, onde mesclam diversão e politização, festas-propaganda, piqueniques, publicam jornais e panfletos para divulgar assuntos diversos que dizem respeito à vida operária”, conta Jacy Seixas.
Essa diversidade de práticas é vista pelos pesquisadores como um indício de que as idéias libertárias atingiram um grande número de pessoas, entre homens e mulheres de distintas nacionalidades, ocupações e condições socioeconômicas, que acabam se tornando militantes ou simpatizantes.
A incorporação de idéias como o antimilitarismo, a preocupação com o papel da mulher, a defesa da liberdade sexual, entre outras, no cotidiano das pessoas aponta a existência de uma “cultura anarquista”, já que alguns desses traços ultrapassam os limites do movimento operário e permeiam outras dimensões da vida de homens e mulheres que não se dizem anarquistas.
De acordo com Jacy Seixas, o anarquismo nasce das relações humanas existentes naquele período e da luta pela emancipação social travada dentro de um contexto. Ele tem uma formação histórica, e não pode ser caracterizado como mera ideologia propagada por “agitadores estrangeiros”.
A estratégia operacional proposta para promover a transformação social era a “ação direta”, que prega a atuação livre e espontânea da pessoa, preservando sua autonomia. O próprio indivíduo deve agir para alcançar seus objetivos, e não obtê-los por meio da ação de terceiros, pois, para eles, quem dá o poder de decisão a outros não é livre. “Baseados nesse princípio, eles criam o primeiro sindicalismo no Brasil”, conclui Seixas.
Virgínia Fonseca
Fonte: Revista Minas Faz Ciência Nº 24 (dez de 2005 a fev de 2006)
Disponível em: http://revista.fapemig.br/materia.php?id=413 .

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