domingo, 2 de janeiro de 2011

Razão, Paixão e Anarquismo*


    Em primeiro lugar, algumas definições sobre o que é ANARQUISMO. É necessário clarear alguns conceitos como anarquia, poder, governo e socialismo. Anarquia significa ausência de poder ou de autoridade constituída. Há uma diferença sutil no discurso, mas importante na realidade, entre poder político e poder social. O primeiro exerce o poder de coação: uma ou mais pessoas têm o poder de obrigar outras a fazer o que não desejam. Ocupam os governos do Estado, o KRATOS, o poder político no sentido grego, qualquer que seja a sua forma, teocracia, aristocracia, monarquia, oligarquia, democracia, em todas as suas instâncias. É contra este poder hipertrofiado nos Estados Nacionais modernos que os anarquistas lutam hoje. Os anarquistas sabem e todos os estudos históricos o demonstram que o exercício deste poder sempre corrompe seus detentores, que acabam exercendo-o em benefício próprio, de uma forma ou de outra, em diferentes graus, sempre em detrimento do povo.
    O outro poder, o poder social, é participado, exercido por todos nas decisões coletivas: o poder de uma assembléia de tomar decisões. Exemplo de proporções enormes foi o poder que tinha a CNT espanhola, com milhões de afiliados, durante a Guerra Civil, de decidir pela organização autogestionária e pelas experiências práticas do anarquismo durante a revolução. É o poder que é exercido por todos em qualquer prática autogestionária, nas decisões realmente coletivas.
    O termo Governo tem o sentido de autoridade diretora e o sentido restrito é o de governo político, centralizador do KRATOS social. Mas, por extensão, tem o sentido de gestão, organização, ordenamento. A expressão “desgoverno” (avião ou carro desgovernado) tem o sentido de desorganização e é análoga ao sentido pejorativo de anarquia. A proposta anarquista é pela organização e, neste sentido, pelo autogoverno, como sinônimo de autogestão.
    Não há expressão mais aviltada do que o termo SOCIALISMO. Assim como para a imensa maioria das pessoas é inconcebível as sociedades humanas se organizarem sem Estado, tal a desinformação, para a maioria das pessoas, socialismo passou a ser sinônimo de estatização. Intelectuais das mais variadas tendências, nas universidades, na imprensa escrita e em todos os meios de comunicação repetem a mesma pregação. Tudo o que se refere a socialismo passa pelo Estado.
    Quando dizemos que o anarquismo é antes de tudo sinônimo de socialismo, temos que dar um mínimo de clareza ao nosso conceito de socialismo: daí a expressão socialismo libertário. Socializar é tomar a propriedade e os instrumentos de trabalho, enfim toda a riqueza e o que a produz, disponível à sociedade, acabando com a exploração do homem sobre o homem. Mas, para o socialismo libertário, não basta socializar os bens materiais: é preciso socializar o saber, a informação e todos os bens culturais. Mas, o que é fundamental, jamais haverá socialismo se não fizer a socialização do poder – a primeira coisa a ser socializada é o poder, que começa com a autogestão das lutas. Destruir o poder político e fortalecer o poder social, eis o que significa autogestão, a real igualdade e liberdade em todo o processo de transformação.
    O anarquismo não é uma doutrina rígida, com artigos de fé, tábuas da lei, com profetas, com excomunhões, processos de heresia e sanções. É antes um conjunto de doutrinas e princípios cujos postulados básicos são convergentes, e que está sempre aberto a novas contribuições. Estes postulados básicos formam um fundo comum que, no amplo universo das múltiplas e alternativas atividades libertárias, são o anarquismo propriamente dito.
    O sentido de justiça e equidade, a revolta contra a exploração econômica do homem pelo homem e o combate ao Estado – com a consciência plena de que é a instituição que garante o regime de exploração e privilégio como fonte geradora de opressão e violência sobre o indivíduo e a coletividade – têm a liberdade como um dos mais altos valores humanos; liberdade e autonomia plenas a partir do indivíduo para a associação livre fundada na solidariedade e no apóio mútuo.
    O anarquismo combate todas as formas de autoritarismo, combate todo o poder de coação, tudo o que restringe, limita, sufoca e asfixia o potencial criativo do ser humano.
    Todo o ser humano tem a necessidade de desenvolver seu físico e sua mente em graus e formas indeterminadas; todo o ser humano tem o direito de satisfazer livremente essa necessidade de desenvolvimento; todos os seres humanos podem satisfazer essas necessidades por meio da cooperação e da vida associativa voluntariamente aceita. Cada indivíduo nasce com determinadas condições de desenvolvimento. Pelo fato de nascer com aquelas condições tem necessidades – em termos políticos, tem o direito – de se desenvolver livremente. Sejam quais forem suas condições, ele terá a tendência de se expandir integralmente. Ele terá o desejo de conhecer, saber, exercitar-se, gozar, sentir, pensar e agir com inteira liberdade. Esta necessidade é inerente ao próprio ser. Se o crescimento físico fosse limitado por qualquer meio artificial, tal fato seria qualificado de monstruoso. Também a limitação do desenvolvimento de sua sensibilidade, do seu desenvolvimento intelectual, moral e afetivo, anulando o seu potencial criativo seria lógico considerar-se uma monstruosidade. No capitalismo esse absurdo se dá em todas as instâncias da vida social e ninguém considera isso um absurdo, somente os anarquistas.
A descentralização, a autonomia e o federalismo são as vias pelas quais o anarquismo propõe a construção de uma nova sociedade. A descentralização máxima é o indivíduo. Da plena liberdade e autonomia individuais para a organização segundo os interesses e as necessidades, para as instâncias mais complexas até a completa malha social, os princípios não se alteram. Começando pelo indivíduo como unidade celular da sociedade até o mais amplo tecido social, o princípio da autonomia está presente. Os interesses comuns de diferentes níveis e setores – profissionais, de produção de bens, planejamento, geográficos[1], etc. – resolvem-se pelas federações que as necessidades práticas indicarão. A união de interesses com objetivos comuns, sem quebra de autonomia, é a característica básica do federalismo. Assim, as uniões locais de organizam em nacionais até confederações internacionais.
    Em todos os atos, ante todos os fatos, o ser humano analisa, estima, aceita ou repudia o que se dá, o que acontece, formulando um juízo de valor. O tema é vastíssimo e seu estudo pertence à ontologia[2]. Apenas alguns conceitos para nos situarmos enquanto anarquistas. As vias de nosso conhecimento são a sensibilidade, a intelectualidade e a afetividade. Temos portanto uma intuição sensível, uma intuição intelectual e uma intuição páthica (do grego afeto, paixão). Há uma interatuação entre elas. Podemos racionalizar um sentimento de simpatia ou de antipatia[3], como podemos, através de uma dedução lógica, provocar a nossa santa fúria.
    Quase todos colocam os valores numa escala hierárquica: uns num grau mais elevado que outros[4]. O filósofo alemão MAX SCHELER (1874-1928) apresenta a seguinte ordem, que não é aceita por todos:

Valores religiosos (santo e profano)

Valores éticos (justo e injusto)

Valores estéticos (belo e feio)

Valores lógicos (verdade e falsidade)

Valores vitais (forte e fraco)

Valores utilitários (conveniente e inconveniente)

    Há variáveis, na subordinação dos valores, que se refletem de pessoa para pessoa ou até na mesma pessoa conforme o momento, mas sempre, na maioria das circunstâncias que a vida oferece, um prevalece sobre os outros[5]. Para o anarquista todos os valores se subordinam aos valores éticos, porque todos os atos humanos são passíveis de juízo ético.
    O que é ser anarquista? Ser anarquista é antes de tudo uma atitude ética. Ante a iniqüidade, um ímpeto de justiça leva o anarquista a romper racional e afetivamente com o sistema vigente. Romper com a autoridade é afirmar a própria independência humana. Ser anarquista é procurar realizar no quotidiano a plenitude do ato humano, e o ato humano só o é quando livre, fundado na vontade, no conhecimento dos fins e no poder de realizá-lo. Contra toda a desmoralização do ato humano, a luta anarquista não tem limites. Ser anarquista não tem limite. Ser anarquista é lutar pela liberdade de todos, tendo a consciência de que a liberdade dos outros aumenta a minha própria e não a limita.
   As paixões humanas [6] sempre foram objeto de estudo dos anarquistas. Apenas para ilustrar, vamos citar as teses apresentadas no 2°. Certâmen Socialista, realizado no dia 10 de novembro de 1889 no palácio de Belas Artes de Barcelona.
   Proposta do Círculo Operário de Barcelona: “Suponho uma sociedade verdadeiramente livre ou anarquista e sendo a instrução elevada ao grau máximo concebível, podem ser causas de desarmonia social as chamadas paixões humanas?” Foram apresentados seis trabalhos escritos sobre tal questão. No primeiro, apresentado por Teobaldo Nieva, é destacado o papel das paixões no desenvolvimento físico e mental da humanidade e como as religiões, as correntes filosóficas, os poderes político e econômico têm sufocado esta energia criadora. O autor se estende na crítica às religiões, a todas as formas autoritárias e repressivas e conclui que, apesar de tudo, elas continuam a ser a seiva vivificante da vida. As paixões são definidas e, ao contrário dos pecados capitais que são sete (orgulho, avareza, luxúria, etc.), as paixões são infinitas: o amor sexual, a paixão pelo belo, pela arte, pelo bem comum, etc. E, na sua essência, as paixões são benéficas, libertam. O desequilíbrio e as injustiças que o capitalismo e o autoritarismo provocam são as causas dos desvios e das práticas viciosas.
    Proposta do Centro de Amigos de Reus: “Benefícios ou prejuízos que a humanidade obteria adotando o amor livre”. Foram apresentados dois trabalhos, o primeiro de Soledad Gustavo. O trabalho começa acrescentando ao título a expressão “Em Plena Anarquia”. A autora considera que o amor livre na atual sociedade seria desastroso, uma desmoralização. Seria irrealizável. Uma sociedade plenamente livre e igualitária, perfeitamente justa teria como base de todas as liberdades a união livre dos sexos. Considera que só a comunidade assumindo a subsistência das mulheres e crianças resolveria o problema da dissolução das uniões. Só uma sociedade anarquista possibilitaria a escolha livre. Para a autora, a maioria considera o amor livre uma variedade de prazeres sensuais. Pura ignorância do que significa liberdade [7].
    Já Anselmo Lorenzo, em seu trabalho, faz uma incursão nas civilizações antigas rasteando as diferentes formas e costumes que envolvem a união dos sexos. Desde povos que viviam na mais absoluta promiscuidade, aos que adotaram a poligamia e a poliandria, até a monogamia e os padrões que regem o casamento na atual sociedade, para concluir que não se tem direito algum de afirmar que o conceito atual de casamento e família seja original, legítimo e unicamente natural. Havendo liberdade e igualdade os indivíduos e a sociedade se organizarão e praticarão a forma que mais lhes convier.
    A expressão amor livre, hoje eivada de conotações pejorativas, se confunde com a amizade colorida dos anos 70, por isso preferimos a expressão amor libertário [8]. Simplesmente a união de dois seres que se amam, sem injunção de espécie alguma. Sem interferência do Estado, da Igreja, da família, dos fatores econômicos, etc. sem preconceitos de espécie alguma. O amor sexual é como uma florescência da vida [9]. Suas práticas são tão diversas, tão diferentes seus graus de desenvolvimento, como imenso é o campo da afetividade. Impossível reduzir o amor a uma definição concreta. Impossível determiná-lo por condições particulares fixas. Nada mais variável. O amor sexual se apresenta sempre impregnado do sabor particular de cada associação humana; sujeito a normas, formalismos e rituais que variam com o organismo social. O amor sexual desprovido de ritualismos ridículos, fórmulas jurídicas, só será possível quando a sociedade tiver superado as contradições que a impedem de resolver os problemas que afetam as necessidades básicas das pessoas.
    A história do movimento anarquista é pontilhada de extremos de paixão e lucidez [10], de amor e de heroísmo, que seria impossível registrá-los todos aqui.
    Há no ser humano um desejo inerente de ir além, de ter uma vida diferente da que vive. Há assim um ímpeto utópico. O desejo de alcançar uma realidade que ainda não existe. Há as utopias de evasão, que expressam um desejo de afastamento da realidade vivida, que denominamos fuga da realidade, e há utopias de superação, que condensam desejos de alcançar estágios superiores ainda não vividos. Para que o homem alcance uma superação constante de si mesmo (o que seria a efetivação de uma revolução permanente não só em si, como também em seu meio) é necessária uma dose de utopia, porque sem o desejo de tornar tópicos os valores mais altos é impossível estimular a criação [11]. Os que julgam que o ímpeto utópico é uma fraqueza, resultado de uma deficiência humana, pouco sabem de psicologia.
    É preciso muito sonho, muito desejo, muita crença nas possibilidades de cada um e na de todos para que possamos superar obstáculos, vencer dificuldades, construir possibilidades remotas, tornar em ato o que parecia um sonho impossível.
    A história do anarquismo é, como dissemos, partilhada por estes atos de lucidez, paixão, heroísmo e amor que sempre foram e serão muito gratificantes para os que viveram tais momentos de plenitude libertária.

Jaime Cubero( 1926- 1998), anarquista brasileiro.

Notas:

*Originalmente publicado na Revista “Libertárias”, São Paulo, nº4, Dez, p.64-68, 1998. Republicado em Eidos info-zine, Patos de Minas, nº26, Out, 2010.Disponível em:http://wwweidosinfozine.blogspot.com/2010/10/eidos-info-zine-262.html.Este artigo corresponde, em parte, a palestra proferida por Jaime Cubero na Universidade Federal de Uberlândia, em 01/12/1994, durante a inauguração do Nephispo (Núcleo de Estudos e Pesquisas em História Política), coordenado, na época, pelas professoras Christina Roquette Lopreato e Jacy Alves de Seixas. Os originais deste artigo foram preparados por José Orsi Carlos Morel.

[1] Que vão desde o espaço físico das comunidades até a ecologia de grandes regiões.

[2] Axiologia (do grego axios = valor, valia + logos = teoria) é o termo atualmente utilizado para designar a teoria do valor, que investiga a natureza, a essência e os diversos aspectos que o valor pode tomar na especulação humana. Timologia (do grego tumh´= Avaliação + logos = teoria) é a disciplina que estuda o valor da avaliação, o valor extrínseco de alguma coisa. Ambas são disciplinas regionais da Ontologia. Dizemos que alguém faz valer algo, isto é, dá-lhe um valor, valoriza. Há uma frase do grande anarquista MAX STIRNER, que tem servido de lema para muitos anarquistas individualistas “...No limiar de nossa época não está gravada a antiga inscrição apolínea conhece-te a ti mesmo mas sim a nova inscrição faze valer a ti mesmo.

[3] No plano psicológico, nossos sentidos realizam sempre uma escolha entre diversos estímulos, recebendo apenas aqueles que correspondem aos esquemas sensório-motores e aos esquemas noéticos, intelectuais ou afetivos, racionais ou emocionais. Também no plano sociológico, os processos são os mesmos, desde as escolhas realizadas pelos indivíduos, que seguem normas afetivas, como na estruturação dos grupos sociais. O valor está presente em todos os atos que praticamos.

[4] Exemplos práticos da aceitação e predominância de alguns valores sobre os outros: valores mercantis e utilitários da nossa época (padrão desde a pré-infância); “Lei do Gerson”; ter em oposição ao ser.

[5] Todas as eras da Humanidade conheceram suas escalas de valores, ora predominando uns, ora outros. A classificação de SCHELLER pode ser ampliada, como muitos o fazem, ou até mesmo INVERTIDA. Para os socialistas autoritários, os marxistas, no ápice encontram-se os valores utilitários; para os anarquistas os valores éticos prevalecem sobre os demais; para os fascistas são os valores vitais e utilitários que predominam; para os cristãos, socialistas ou não, os religiosos.

[6] Todo o potencial criativo do ser humano é despertado por um impulso apaixonado, nas infinitas variáveis de sua manifestação. O último livro publicado de ROBERTO FREIRE, “Tesudos de Todo o Mundo: Uní-vos” é rico de exemplos deste aspecto.

[7] Não podemos esquecer que são conceitos emitidos em 1889, há 106 anos, quando a total dependência da mulher e dos filhos ao homem, em qualquer união conjugal, era objeto das discussões e de acerbas críticas dos anarquistas. Uma de suas trincheiras de propaganda. Hoje, em que pese todos os avanços e conquistas, a situação não mudou muito. A paternidade responsável e a solução para o problema das dissoluções conjugais só se verifica em casos isolados.

[8] Em uma palestra, na CASA DA SOMA, sobre amor livre, abordamos o assunto, juntamente com ROBERTO FREIRE e concluímos por essa conceituação. A expressão amor libertário é de ROBERTO FREIRE, a quem considero, entre os autores anarquistas que conheço, o maior e mais profundo na abordagem do tema, em termos atuais.

[9] O amor sexual permeia e influi no comportamento humano e nas ações políticas porque é intrínseco à natureza humana e está presente na história da humanidade.

[10] Citemos, entre muitos, os nomes de Louise MICHEL e de Emma GOLDMANN, os Mártires de Chicago, BAKUNIN, entre tantos, tantos outros. Bakunin, por exemplo, nos dá a seguinte definição de revolucionário: “... é aquele que, junto à inteligência, à energia, à lealdade e ao espírito de conspiração, possua também a paixão revolucionária e o diabo no corpo.” É literalmente impossível citar aqui os exemplos que transcendem todas as ideologias.

[11] Os antigos denominavam jubileu a indulgência plenária, solene e geral, concedida pelos papas aos católicos, nos primórdios do cristianismo, porque os homens tiravam de suas costas o peso do temor do castigo pelos pecados cometidos, ao livrarem-se das culpas. O termo tomou depois outros sentidos, mas mantém o conteúdo conceitual de satisfação plena, ou seja de uma profunda alegria. Não se trata de uma alegria qualquer, como certas alegrias passageiras, que deixam atrás de si uma marca sombria, até mesmo um rastro de tristeza. Trata-se do júbilo: uma das mais belas manifestações da paixão humana. Essa alegria, esse júbilo, é sempre excitante e criador de energias. O júbilo é predominantemente da intelectualidade e da afetividade implica um gozo mais profundo das coisas que almejamos. Para o anarquista, esta é a sua grande compensação.

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