segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

A objeção de consciência nos escritos de Maria Lacerda de Moura*


Maria Lacerda de Moura teve uma trajetória de vida singular, pois trocou experiências com organizações anticlericais, femininas/feministas, anarquistas e comunistas, o que lhe proporcionou um olhar crítico sobre a realidade vivenciada. Defendeu a educação enquanto meio de emancipação humana, lutou contra o fascismo, contra a guerra, o analfabetismo, o clericalismo, e principalmente contra a submissão da mulher ao homem e da humanidade ao capitalismo.
Em Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura, Miriam Leite registra a história dessa mulher. Nasceu em Manhuaçu/MG, em 16 de maio de 1887. Seu pai foi Modesto de Araújo Lacerda e, sua mãe, Amélia de Araújo Lacerda, ambos adeptos do anticlericalismo.
Deslocou-se com a família para Barbacena/MG em 1891, onde se tornou professora e casou-se, aos 17 anos de idade, com Carlos Ferreira de Moura. Como não podia ter filhos, adotou Jair em 1912, um sobrinho, e Carminda, uma órfã carente. Nesse período, Maria Lacerda trabalhou intensamente com a questão da educação e, em Barbacena, ajudou a fundar a Liga contra o Analfabetismo (1912). Seguiu realizando conferências e publicando os livros Em torno da Educação (1918) e Renovação (1919).
Em 1921 mudou-se para São Paulo e interou-se de questões importantes para a sua vida intelectual e militante; momento de engajamento na luta pela emancipação da mulher. Maria Lacerda de Moura e algumas militantes anarquistas - Matilde Magrassi, Isabel Cerruti, Josefina Stefani, Maria Antonia Soares, Maria Angelina Soares, Maria de Oliveira e Tibi - fundaram a Federação Internacional Feminina. A proposta da Federação era discutir questões relativas à mulher e à criança com vistas a transformar as relações estabelecidas na sociedade capitalista. As militantes questionavam a educação formal, as condições de trabalho, a subjugação da mulher aos dogmas católicos, o sistema representativo e a estrutura estatal.
Ainda em São Paulo, após contato com os movimentos femininos e operários, Maria Lacerda publicou alguns trabalhos como a revista Renascença em 1923, os livros A mulher é uma degenerada? (1924) e Religião do Amor e da Belleza (1926). Obras que tratam da emancipação feminina, maternidade consciente, educação e revelam os posicionamentos da autora sobre o papel da mulher na sociedade.
Entre 1928 e 1937, período de amadurecimento de idéias e engajamento na luta contra o fascismo, a guerra e o clericalismo, viveu em “Guararema”, na chácara D. Maria Lacerda, comunidade anarquista de cunho individualista onde cada um deveria responsabilizar-se pelo seu próprio sustento, ao contrário de outros agrupamentos coletivos como a Colônia Cecília. O grupo era formado por espanhóis, italianos e franceses objetores de consciência da Primeira Guerra mundial.
Muito produtiva, publicou no jornal O Combate a partir de 1928 e realizou conferências para a Internacional do Magistério Americano em Buenos Aires no ano de 1929. Lançou os livros Civilização - tronco de escravos (1931); Amai e ... não vos multipliqueis (1932); Serviço militar obrigatório para a mulher? - Recuso-me! Denuncio! (1933); Clero e fascismo - horda de embrutecedores (1934); Fascismo - filho dilecto da Igreja e do Capital (1934).
Durante o Estado Novo, a comunidade de Guararema foi reprimida pelo governo Getúlio Vargas, fazendo com que Maria Lacerda de Moura voltasse para Barbacena/MG em 1937, onde sofreu grande discriminação pelo seu histórico de luta. No ano seguinte, foi viver no Rio de Janeiro/RJ e trabalhou na Rádio Mairinque Veiga. Maria Lacerda dedicou-se ao estudo da astrologia nesse período, e sua última conferência foi realizada no Rio de Janeiro, em 1944. Faleceu em 1945, aos 58 anos de idade.
A noção de objetar de consciência aparece nos textos da autora como uma postura de vida a ser adotada, ou ainda, uma escolha pela liberdade. O indivíduo livre pensa autonomamente porque é capaz de mediar experiências coletivas marcadas pela opressão e pela coerção. Nesse sentido, a educação libertadora foi defendida como meio para alcançar autonomia. O indivíduo adquiriria condições de pensar livremente na medida em que tivesse referências e parâmetros de mundo que os tornasse apto a mediar idéias e práticas compartilhadas socialmente.
A defesa da liberdade de pensamento levaria à liberdade do indivíduo, ao exercício de livre consciência, à emancipação humana. A objeção de consciência se dava no momento de rebeldia do indivíduo frente aos valores impostos pelas instituições coercitivas da sociedade: Estado, família e Igreja.
A ativista difundiu a necessidade da auto-educação, assim como a construção de parâmetros de vida pautados na solidariedade e no respeito mútuo. Em seus argumentos, a mulher tinha papel fundamental na transformação humana, pois uma mãe consciente de si seria propulsora dos novos valores na sociedade. Nesse sentido, Maria Lacerda defendeu a emancipação feminina tendo como princípio o domínio do próprio corpo pela mulher, o que implicava no autoconhecimento e na recusa às imposições morais e religiosas. A maternidade consciente engendraria um conjunto de valores e comportamentos libertos das amarras sociais, pois a mulher conhecedora do próprio corpo, autônoma em seus sentimentos, estaria mais bem preparada para a escolha do pai de seu filho e saberia o momento oportuno de ser mãe. Maria Lacerda entendia que a transformação da condição feminina significava um “elo” para a emancipação humana.


Perguntam-me o que penso a respeito da emancipação feminina. Para mim, é mais um élo da emancipação humana.
A organização social de prejuízos e privilégios, baseada no capital e no salário, na exploração do homem pelo homem, civilização industrial-burgueza, nunca emancipará nem ao homem (...) á mulher.
Dentro da sociedade capitalista a mulher é duas vezes escrava: é a “protegida”, a tutelada, a “pupilla” do homem, a criatura domesticada por um “senhor” cioso, e, ao mesmo tempo, é escrava social de uma sociedade baseada no dinheiro e nos privilégios mantidos pela autoridade do Estado e pela força armada para defender o poder, a autoridade, a propriedade privada, o patriotismo monetário. (MOURA, Maria Lacerda de. A Emancipação Feminina. O Combate, São Paulo, n. 4604, p. 3, 12/01/1928).


A condição duplamente escrava da mulher só seria desmobilizada com a superação das desigualdades sociais. O combate aos privilégios de classe e à domesticação da mulher era parte de um único projeto: desconstrução de estratégias de dominação utilizadas pelas elites políticas e econômicas brasileiras.
O discurso da desigualdade entre classes está explícito no texto de Maria Lacerda que entendia a possibilidade de mudança através do esforço individual e da auto-educação, por meio do objetar de consciência. Tendo em vista sua postura individualista, a autora acena para a necessidade da autocrítica das mulheres no sentido de adotarem um posicionamento autônomo perante as pressões sociais. Propunha, então, que as mulheres desprezassem as maledicências e reivindicassem sua liberdade. Uma vez que a sociedade era fruto de relações desiguais, a única forma de sair desse círculo vicioso seria buscar a independência econômica e a liberdade sexual.
Contrariando o direcionamento dado pelo movimento feminista sufragista, a autora travou um embate com as feministas, principalmente no que diz respeito à luta pelo direito do voto. Maria Lacerda foi enfática ao afirmar a necessidade do domínio sobre o próprio corpo ao invés de canalizar energias para luta político-institucional, uma vez que entrar nas estruturas do Estado significava compactuar com um sistema que gerava a pobreza e a ignorância.


Só podemos aspirar ao progresso moral de cada individuo, considerando como unidade.
Nesse caso, a mulher tem de proceder como os individualistas livres, se tem caracter, dignidade, se reivindica o direito de viver, o direito de criatura, de ser humano.
A mulher terá de deixar as suas tolas, infantis reivindicações civis e políticas – para reivindicar a liberdade sexual, para ser dona do seu próprio corpo.
É a única emancipação possível dentro da civilização – mercado humano, tronco de escravos.
Emancipar-se economicamente ou ganhar a vida pelo seu trabalho e emancipar-se pela liberdade sexual. (MOURA, Maria Lacerda de. A emancipação feminina. O Combate, São Paulo, n. 4604, p. 3, 12/01/1928).


Um dos livros escritos na comunidade de Guararema (MOURA, Maria Lacerda de. Ferrer o Clero Romano e a Educação Laica. São Paulo, Editorial Paulista, 1934), propõe uma série de reflexões da autora sobre Estado, fascismo e a não-violência. “Para educar, é preciso ter-se educado a si proprio, na tortura gloriosa do dominio das paixões e do espirito de autoridade” (p.88).
O ser humano livre é aquele que se coloca acima dos dogmas difundidos pela família, Estado e religião. A negação das instituições e valores domesticadores consistia no que a autora denominou objetar de consciência. Ser objetor de consciência significa posicionar-se contrário ao que se convencionou considerar inquestionável, a começar pelos sistemas políticos e religiosos que permanecem vigentes.
Em Guerra à guerra (MOURA, Maria Lacerda de. Guerra á guerra. O Combate, São Paulo, n. 4560, p. 3, 19/11/1927), Maria Lacerda falou sobre a atitude de um francês que não se alistou ao serviço militar obrigatório e acabou sendo preso em conseqüência de sua insubmissão. O artigo foi publicado em 1927 e Chevé argumentava que havia presenciado os horrores da 1º Guerra Mundial quando criança, se recusando a alistar-se nas fileiras da morte. A atitude desse homem teve grandes repercussões no mundo, tornando-se notícia na imprensa livre.
A postura de Georges Chevé representava a possibilidade de ser livre e estar acima das pressões sociais. O francês optou pela liberdade, mesmo que seu corpo fosse encerrado numa cela. Do que vale um corpo livre quando a mente está presa? Manter o corpo livre significava, naquelas circunstâncias, colocá-lo a serviço da morte. Ser livre era estar preso. O indivíduo recusou-se à humilhação. Chevé não se permitiu ser domesticado, segundo Maria Lacerda.
O sentimento de humilhação é forjado numa relação desigual na qual uma das partes (individual ou coletiva) é a agressora e a outra, vítima de agressão (ANSART, 2005). Uma situação de humilhação gera dor, sofrimento, sensação de inferioridade e ofensa. Ao sentir-se ofendido o indivíduo é atingido em sua honra, pois honrado é aquele que não se subjuga. Várias são as experiências humanas de humilhação e a recusa a essas situações consiste na afirmação de si.
A recusa a pactuar com aquilo que é baixo, a se inclinar diante de uma situação humilhante, é um dos três sentidos da honra como nos mostra Febvre. A recusa implica em preservar a dignidade na desventura, em manter-se fiel àquilo que se é, à sua identidade pessoal. A honra é também uma sensibilidade muito viva “às diminuições de que nossa pessoa possa ser vítima, um grande sentimento de beleza da própria vida, que implica obrigação de tudo fazer para que ela não seja pisoteada, de apagar qualquer humilhação.” E no seu terceiro sentido, a honra é uma força de ação, que engaja, sem hesitação, o homem na ação. É uma espécie de escudo que barra as impurezas que são colocadas diante de nós. (LOPREATO, 2005, p.249).


Georges Chevé afirma a si mesmo quando se nega a uma situação de humilhação, quando não se submete ao serviço militar, à violência e ao poderio do Estado. A atitude de Chevé deveria ser adotada por todos, segundo Maria Lacerda, com vistas à construção de uma nova sociedade. Num momento em que o fascismo se impunha na Itália e influenciava o Brasil com projetos homogeneizantes, a recusa às imposições do Estado era uma reação à domesticação.
Serviço militar obrigatório para mulher? Recuso-me! Denuncio! também foi produzido quando da luta de Maria Lacerda contra o fascismo. É resultado de uma conferência realizada em 1932 a pedido da Liga Anticlerical do Rio de Janeiro. O livro foi publicado em 1933, com Getúlio Vargas no poder. A autora já havia adotado uma postura política radical e realizava ferrenhas críticas a um Estado autoritário e dilacerante que dissolvia o indivíduo, matando o seu poder de criação e de intervenção.
A preocupação da autora era denunciar os mecanismos de poder de uma conjuntura política delicada no Brasil e no mundo, tendo em vista que o fascismo influenciava nosso país na década de 1930. O Estado italiano investia na militarização da população, incitava a violência e adotava uma educação religiosa. O nacionalismo e o patriotismo eram cultivados pela Igreja e pelo Estado.
O livro de Maria Lacerda sobre o serviço militar trata dos horrores causados por guerras. Um projeto de lei da época visava tornar obrigatório o serviço militar para ambos os sexos no Brasil. A autora realizou reflexões de negação à proposta apresentada e alistou-se à Internacional dos Resistentes a Guerra, associação de pensadores contrários à guerra e à violência.
A necessidade de se implementar o serviço militar obrigatório já era defendida por Olavo Bilac em 1915 (LUCA 1999). Os homens convocados para servirem à pátria seriam os responsáveis pela defesa do território nacional se necessário, e sacrificariam suas vidas em nome das fronteiras brasileiras. No entanto, este anteprojeto de Constituição trazia uma novidade: a obrigatoriedade do serviço às mulheres.


Pode-se afirmar, desde já, que o serviço militar será obrigatório para todo brasileiro que completar 21 anos”. Quanto a essa parte, na futura Constituição haverá um pormenor interessante: “As mulheres também serão obrigadas ao alistamento militar para que possam ficar integralizadas na comunhão político-social. Uma vez chamadas, serão distribuídas pelos diversos serviços auxiliares, como a Cruz Vermelha, Administração, Arsenais, etc. (MOURA, Maria Lacerda de. Serviço militar obrigatório para mulher? Recuso-me! Denuncio! Guarujá/SP: Editora Opúsculo Libertário, 3ª reedição, p.:19, 1999.)


Para a autora esse projeto de lei explicitava o abuso de poder que o Estado imprimia sobre a população. Segundo Maria Lacerda, o Estado é responsável pela morte do indivíduo. Este é absorvido por uma instituição autoritária que se coloca como representante do todo, mas defende os interesses de uma elite. Os servidores da pátria são, portanto, defensores de uma classe privilegiada entregue ao imperialismo.
A relação do governo de Vargas com o fascismo na Itália, segundo Maria Lacerda, estava na subjugação do indivíduo pelo Estado, na perda da liberdade individual. A disciplinarização dos indivíduos e dos movimentos populares se dava pelo conjunto de leis elaboradas pelo Estado, burocracia criada para servir de mediação entre patrão e empregados. O Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, criado em 26 de novembro 1930 (decreto nº 19.433), representava o controle sobre os trabalhadores que se encontravam à mercê das regras ditadas pelo mercado.
Maria Lacerda apontava o caráter subserviente da elite brasileira frente aos interesses estrangeiros, o que tornava questionável a postura nacionalista tão propagada pelo governo. A autora buscava alertar o leitor para o fato do discurso em favor da pátria representar um meio de manter a população envolvida pela idéia de civismo, enquanto os grupos mais favorecidos abriam espaço à exploração estrangeira.
O Brasil, segundo Lacerda de Moura, esteve à mercê do poder colonizador e imperialista, herdando uma cultura fortemente autoritária perceptível em diversos âmbitos sociais. Este país que foi construído de forma truculenta, a partir de um processo de exploração e desrespeito aos povos originários, havia aprendido a conviver com o chicote do feitor.
Maria Lacerda afirmava: “Há só um caso em que me posso tornar patriota, nacionalista: é quando os interesses humanos se confundem com os interesses nacionais” (MOURA, Maria Lacerda de. Clero e Estado. RJ: Editora Liga Anti-Clerical, 1931, p.4). Os interesses nacionais deveriam, portanto, acompanhar os interesses dos indivíduos, fortalecer a dignidade humana, estabelecer uma convivência pacífica e igualitária onde reinasse a liberdade de ação e de pensamento.
A proposta de serviço militar obrigatório para homens e mulheres sustentava o projeto bélico do Estado nacionalista, de acordo com a autora. Um Estado forte o era pelo seu potencial de destruição; nesse sentido, as medidas governamentais objetivavam fortalecer o exército.
Entendidos como mecanismos de controle social, família, Estado e religião aparecem no discurso lacerdiano como causadores de ignorância e domesticação. A palavra domesticar é explorada em vários textos, revelando um estilo incisivo e direto de escrita. Maria Lacerda era avessa às instituições controladoras – posicionamento que demonstra sua opção pela anarquia: a busca da liberdade de pensamento e de ação. Domesticar o ser humano é anulá-lo obrigando-o a se curvar perante um mundo conflituoso e marcadamente injusto. A necessidade de se opor à domesticação era tarefa difícil, desempenhada por poucos.
Ser um objetor de consciência significava buscar novas formas de sociabilidade que tivessem como único interesse o amor entre os indivíduos. Cultivar amor à pátria e morrer por ela seria uma forma de negar-se como ser humano, negar sua consciência em nome de um Estado que mantém privilégios de classe. Cultivar amor à família significava manter-se preso a uma estrutura de poder na qual um sobrenome determina a origem e a formação do indivíduo. Cultivar o amor à Igreja era, sobretudo, manter-se ligado a uma instituição que historicamente esteve ao lado do Estado e do Capital, difundindo valores repressores e mantenedores do status quo.
Muitos de seus textos apontam para a necessidade de se entender a vida para além da razão. A religião, segundo a autora, não respondia a esses anseios, ao contrário, representava mais uma forma de prisão num mundo marcado pela violência, corrupção, ódio e descaso com o próximo. Maria Lacerda reivindica o direito de pensar no transcendental sem que isso fosse confundido com superstição ou religião, como podemos perceber no texto a seguir:


A razão não tem o direito de sufocar o sonho.
Reduzir a inquietude a preconceito religioso é um crime e um preconceito mais vulgar. Metafisica não é religião.
A religião é muleta para os fracos e ignorantes. Não basta, não satisfaz à curiosidade dos que já escalaram mais alto.
Tambem a ciencia oficial nada póde explicar das cousas transcendentais. Paira à superficie. Cultiva o preconceito do saber absoluto. E não responde às nossas interrogações, à inquietação do nosso espirito insatisfeito. (MOURA, Maria Lacerda de. Ferrer, o Clero Romano e a Educação Laica. S.P, Editorial Paulista,1934, p.58.


O discurso acima revela um aspecto – talvez – comum às pessoas que se dedicam às grandes causas políticas. Ao apresentar sua crítica frente à organização social vigente o faz num tom implacável, visceral. Sua escrita nos dá pistas de como manteve suas convicções a despeito das críticas e repressões sofridas – a autora fala dos sonhos. O direito de sonhar e investir num futuro diferente, numa nova sociedade.
Ao reivindicar a possibilidade de pensar o mundo para além da superstição e da razão e, ao reivindicar o direito de sonhar, Maria Lacerda nos coloca questões importantes que dizem respeito aos projetos individuais. As muletas religiosas, as leis humanas – representadas pelo Estado – e a supervalorização da razão contribuem para a inércia individual e supressão dos sonhos. A inquietude humana frente à vida e todos os “fantasmas” que circundam o mistério do viver fazem parte da essência humana. A ativista chamava atenção dos leitores para essa questão, já que acreditava na possibilidade dos seres humanos criarem outras formas de sociabilidade baseadas no sentimento de amor e solidariedade. O direito de sonhar leva à ação – daí o conteúdo revolucionário dos escritos lacerdianos.
Torna-se clara a associação entre a noção de objetar de consciência e liberdade se entendermos a objeção como negação ao instituído. O indivíduo que nega as leis impostas pelo Estado, os valores religiosos e da família burguesa, e assume posturas autônomas frente às questões que o interpelam, é um indivíduo livre. O direito de sonhar com o novo só é dado àquele que se opõe às convenções. Extinguir o governo, a propriedade privada e a desigualdade entre classes para conquistar a liberdade.
Segundo Kropotkin, o” homem para ser livre precisa se libertar do capitalismo e do Estado que o sustenta” (LOPREATO, 2003, p 572). O anarquista defensor da liberdade, da solidariedade e do indivíduo argumentava sobre os malefícios causados pela coerção do Estado e apostava na destruição dessa instituição, bem como na reinstauração de valores pautados no princípio de ajuda mútua. A negação dos mecanismos de controle sobre o indivíduo e o exercício de objeção de consciência levaria à liberdade.
Maria Lacerda de Moura apostou em sua ação discursiva e acreditou na possibilidade de sonhar com o “novo”. Passou por vários processos em seu amadurecimento intelectual até chegar à noção de objeção de consciência. A defesa da ativista era um alerta quanto às posturas políticas adotadas pela maioria da população. Ao leitor do século XXI cabe refletir sobre as críticas dos libertários acerca da família, Estado e religião. Em que medida os debates promovidos pelos anarquistas nos colocam questões do presente?
A defesa da objeção de consciência incomoda a todos nós, pois nos faz pensar nos posicionamentos e escolhas tomados ao longo de nossas vidas. Na maioria das vezes, quando nos deparamos com algumas encruzilhadas, optamos por atender às expectativas familiares, profissionais ou religiosas, negando nossos desejos pessoais. O alerta da anarquista se direciona às pessoas que se deixam “engolir” por sentimentos ditos “coletivos” quando, na verdade, acabam transformando-se em máquinas e obedecendo a comandos. Essa reflexão, a meu ver, é primordial aos indivíduos de ontem e de hoje.


Jussara Valéria de Miranda é mestra em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU); professora da rede estadual de ensino em Limeira, SP e autora da dissertação “Recuso-me: Ditos e Escritos de Maria Lacerda de Moura”, defendida no ano de 2006.


Notas
*Artigo originalmente publicado em Eidos info-zine, Patos de Minas, nº22, Jan, 2010. Disponível em:http://wwweidosinfozine.blogspot.com/2010_01_01_archive.html




Referências


ANSART, Pierre. As humilhações políticas. In: MARSON, Izabel e NAXARA Márcia (org.). Sobre a humilhação. Sentimentos, gestos, palavras. Uberlândia EDUFU, 2005


LEITE, Míriam Lifchitz Moreira. Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. SP: Ática, 1984


LOPREATO, Christina da Silva Roquette. Sobre o pensamento libertário de Kropotkin: liberdade, indivíduo, solidariedade. História & Perspectivas, Uberlândia, v. 27 e 28, jul./dez. 2002/ jan./jun. 2003, p 572


LOPREATO, Christina da Silva Roquette. O respeito a si mesmo: Humilhação e Insubmissão. In: MARSON, Izabel e NAXARA Márcia (org.). Sobre a humilhação. Sentimentos, gestos, palavras. Uberlândia EDUFU, 2005, p.24


LUCA, Tânia Regina de. Revista do Brasil: redespertar da consciência nacional. A revista do Brasil: um diagnóstico para a (n)ação. São Paulo: Editora da UNESP, 1999, pp.: 35-84


MOURA, Maria Lacerda de. Guerra á guerra. O Combate, São Paulo, n. 4560, p. 3, 19/11/1927


MOURA, Maria Lacerda de. A Emancipação Feminina. O Combate, São Paulo, n. 4604, p. 3, 12/01/1928


MOURA, Maria Lacerda de. Ferrer o Clero Romano e a Educação Laica. São Paulo, Editorial Paulista, 1934


MOURA, Maria Lacerda de. Serviço militar obrigatório para mulher? Recuso-me! Denuncio! Guarujá/SP: Editora Opúsculo Libertário, 3ª reedição, p. 19, 1999

domingo, 2 de janeiro de 2011

Razão, Paixão e Anarquismo*


    Em primeiro lugar, algumas definições sobre o que é ANARQUISMO. É necessário clarear alguns conceitos como anarquia, poder, governo e socialismo. Anarquia significa ausência de poder ou de autoridade constituída. Há uma diferença sutil no discurso, mas importante na realidade, entre poder político e poder social. O primeiro exerce o poder de coação: uma ou mais pessoas têm o poder de obrigar outras a fazer o que não desejam. Ocupam os governos do Estado, o KRATOS, o poder político no sentido grego, qualquer que seja a sua forma, teocracia, aristocracia, monarquia, oligarquia, democracia, em todas as suas instâncias. É contra este poder hipertrofiado nos Estados Nacionais modernos que os anarquistas lutam hoje. Os anarquistas sabem e todos os estudos históricos o demonstram que o exercício deste poder sempre corrompe seus detentores, que acabam exercendo-o em benefício próprio, de uma forma ou de outra, em diferentes graus, sempre em detrimento do povo.
    O outro poder, o poder social, é participado, exercido por todos nas decisões coletivas: o poder de uma assembléia de tomar decisões. Exemplo de proporções enormes foi o poder que tinha a CNT espanhola, com milhões de afiliados, durante a Guerra Civil, de decidir pela organização autogestionária e pelas experiências práticas do anarquismo durante a revolução. É o poder que é exercido por todos em qualquer prática autogestionária, nas decisões realmente coletivas.
    O termo Governo tem o sentido de autoridade diretora e o sentido restrito é o de governo político, centralizador do KRATOS social. Mas, por extensão, tem o sentido de gestão, organização, ordenamento. A expressão “desgoverno” (avião ou carro desgovernado) tem o sentido de desorganização e é análoga ao sentido pejorativo de anarquia. A proposta anarquista é pela organização e, neste sentido, pelo autogoverno, como sinônimo de autogestão.
    Não há expressão mais aviltada do que o termo SOCIALISMO. Assim como para a imensa maioria das pessoas é inconcebível as sociedades humanas se organizarem sem Estado, tal a desinformação, para a maioria das pessoas, socialismo passou a ser sinônimo de estatização. Intelectuais das mais variadas tendências, nas universidades, na imprensa escrita e em todos os meios de comunicação repetem a mesma pregação. Tudo o que se refere a socialismo passa pelo Estado.
    Quando dizemos que o anarquismo é antes de tudo sinônimo de socialismo, temos que dar um mínimo de clareza ao nosso conceito de socialismo: daí a expressão socialismo libertário. Socializar é tomar a propriedade e os instrumentos de trabalho, enfim toda a riqueza e o que a produz, disponível à sociedade, acabando com a exploração do homem sobre o homem. Mas, para o socialismo libertário, não basta socializar os bens materiais: é preciso socializar o saber, a informação e todos os bens culturais. Mas, o que é fundamental, jamais haverá socialismo se não fizer a socialização do poder – a primeira coisa a ser socializada é o poder, que começa com a autogestão das lutas. Destruir o poder político e fortalecer o poder social, eis o que significa autogestão, a real igualdade e liberdade em todo o processo de transformação.
    O anarquismo não é uma doutrina rígida, com artigos de fé, tábuas da lei, com profetas, com excomunhões, processos de heresia e sanções. É antes um conjunto de doutrinas e princípios cujos postulados básicos são convergentes, e que está sempre aberto a novas contribuições. Estes postulados básicos formam um fundo comum que, no amplo universo das múltiplas e alternativas atividades libertárias, são o anarquismo propriamente dito.
    O sentido de justiça e equidade, a revolta contra a exploração econômica do homem pelo homem e o combate ao Estado – com a consciência plena de que é a instituição que garante o regime de exploração e privilégio como fonte geradora de opressão e violência sobre o indivíduo e a coletividade – têm a liberdade como um dos mais altos valores humanos; liberdade e autonomia plenas a partir do indivíduo para a associação livre fundada na solidariedade e no apóio mútuo.
    O anarquismo combate todas as formas de autoritarismo, combate todo o poder de coação, tudo o que restringe, limita, sufoca e asfixia o potencial criativo do ser humano.
    Todo o ser humano tem a necessidade de desenvolver seu físico e sua mente em graus e formas indeterminadas; todo o ser humano tem o direito de satisfazer livremente essa necessidade de desenvolvimento; todos os seres humanos podem satisfazer essas necessidades por meio da cooperação e da vida associativa voluntariamente aceita. Cada indivíduo nasce com determinadas condições de desenvolvimento. Pelo fato de nascer com aquelas condições tem necessidades – em termos políticos, tem o direito – de se desenvolver livremente. Sejam quais forem suas condições, ele terá a tendência de se expandir integralmente. Ele terá o desejo de conhecer, saber, exercitar-se, gozar, sentir, pensar e agir com inteira liberdade. Esta necessidade é inerente ao próprio ser. Se o crescimento físico fosse limitado por qualquer meio artificial, tal fato seria qualificado de monstruoso. Também a limitação do desenvolvimento de sua sensibilidade, do seu desenvolvimento intelectual, moral e afetivo, anulando o seu potencial criativo seria lógico considerar-se uma monstruosidade. No capitalismo esse absurdo se dá em todas as instâncias da vida social e ninguém considera isso um absurdo, somente os anarquistas.
A descentralização, a autonomia e o federalismo são as vias pelas quais o anarquismo propõe a construção de uma nova sociedade. A descentralização máxima é o indivíduo. Da plena liberdade e autonomia individuais para a organização segundo os interesses e as necessidades, para as instâncias mais complexas até a completa malha social, os princípios não se alteram. Começando pelo indivíduo como unidade celular da sociedade até o mais amplo tecido social, o princípio da autonomia está presente. Os interesses comuns de diferentes níveis e setores – profissionais, de produção de bens, planejamento, geográficos[1], etc. – resolvem-se pelas federações que as necessidades práticas indicarão. A união de interesses com objetivos comuns, sem quebra de autonomia, é a característica básica do federalismo. Assim, as uniões locais de organizam em nacionais até confederações internacionais.
    Em todos os atos, ante todos os fatos, o ser humano analisa, estima, aceita ou repudia o que se dá, o que acontece, formulando um juízo de valor. O tema é vastíssimo e seu estudo pertence à ontologia[2]. Apenas alguns conceitos para nos situarmos enquanto anarquistas. As vias de nosso conhecimento são a sensibilidade, a intelectualidade e a afetividade. Temos portanto uma intuição sensível, uma intuição intelectual e uma intuição páthica (do grego afeto, paixão). Há uma interatuação entre elas. Podemos racionalizar um sentimento de simpatia ou de antipatia[3], como podemos, através de uma dedução lógica, provocar a nossa santa fúria.
    Quase todos colocam os valores numa escala hierárquica: uns num grau mais elevado que outros[4]. O filósofo alemão MAX SCHELER (1874-1928) apresenta a seguinte ordem, que não é aceita por todos:

Valores religiosos (santo e profano)

Valores éticos (justo e injusto)

Valores estéticos (belo e feio)

Valores lógicos (verdade e falsidade)

Valores vitais (forte e fraco)

Valores utilitários (conveniente e inconveniente)

    Há variáveis, na subordinação dos valores, que se refletem de pessoa para pessoa ou até na mesma pessoa conforme o momento, mas sempre, na maioria das circunstâncias que a vida oferece, um prevalece sobre os outros[5]. Para o anarquista todos os valores se subordinam aos valores éticos, porque todos os atos humanos são passíveis de juízo ético.
    O que é ser anarquista? Ser anarquista é antes de tudo uma atitude ética. Ante a iniqüidade, um ímpeto de justiça leva o anarquista a romper racional e afetivamente com o sistema vigente. Romper com a autoridade é afirmar a própria independência humana. Ser anarquista é procurar realizar no quotidiano a plenitude do ato humano, e o ato humano só o é quando livre, fundado na vontade, no conhecimento dos fins e no poder de realizá-lo. Contra toda a desmoralização do ato humano, a luta anarquista não tem limites. Ser anarquista não tem limite. Ser anarquista é lutar pela liberdade de todos, tendo a consciência de que a liberdade dos outros aumenta a minha própria e não a limita.
   As paixões humanas [6] sempre foram objeto de estudo dos anarquistas. Apenas para ilustrar, vamos citar as teses apresentadas no 2°. Certâmen Socialista, realizado no dia 10 de novembro de 1889 no palácio de Belas Artes de Barcelona.
   Proposta do Círculo Operário de Barcelona: “Suponho uma sociedade verdadeiramente livre ou anarquista e sendo a instrução elevada ao grau máximo concebível, podem ser causas de desarmonia social as chamadas paixões humanas?” Foram apresentados seis trabalhos escritos sobre tal questão. No primeiro, apresentado por Teobaldo Nieva, é destacado o papel das paixões no desenvolvimento físico e mental da humanidade e como as religiões, as correntes filosóficas, os poderes político e econômico têm sufocado esta energia criadora. O autor se estende na crítica às religiões, a todas as formas autoritárias e repressivas e conclui que, apesar de tudo, elas continuam a ser a seiva vivificante da vida. As paixões são definidas e, ao contrário dos pecados capitais que são sete (orgulho, avareza, luxúria, etc.), as paixões são infinitas: o amor sexual, a paixão pelo belo, pela arte, pelo bem comum, etc. E, na sua essência, as paixões são benéficas, libertam. O desequilíbrio e as injustiças que o capitalismo e o autoritarismo provocam são as causas dos desvios e das práticas viciosas.
    Proposta do Centro de Amigos de Reus: “Benefícios ou prejuízos que a humanidade obteria adotando o amor livre”. Foram apresentados dois trabalhos, o primeiro de Soledad Gustavo. O trabalho começa acrescentando ao título a expressão “Em Plena Anarquia”. A autora considera que o amor livre na atual sociedade seria desastroso, uma desmoralização. Seria irrealizável. Uma sociedade plenamente livre e igualitária, perfeitamente justa teria como base de todas as liberdades a união livre dos sexos. Considera que só a comunidade assumindo a subsistência das mulheres e crianças resolveria o problema da dissolução das uniões. Só uma sociedade anarquista possibilitaria a escolha livre. Para a autora, a maioria considera o amor livre uma variedade de prazeres sensuais. Pura ignorância do que significa liberdade [7].
    Já Anselmo Lorenzo, em seu trabalho, faz uma incursão nas civilizações antigas rasteando as diferentes formas e costumes que envolvem a união dos sexos. Desde povos que viviam na mais absoluta promiscuidade, aos que adotaram a poligamia e a poliandria, até a monogamia e os padrões que regem o casamento na atual sociedade, para concluir que não se tem direito algum de afirmar que o conceito atual de casamento e família seja original, legítimo e unicamente natural. Havendo liberdade e igualdade os indivíduos e a sociedade se organizarão e praticarão a forma que mais lhes convier.
    A expressão amor livre, hoje eivada de conotações pejorativas, se confunde com a amizade colorida dos anos 70, por isso preferimos a expressão amor libertário [8]. Simplesmente a união de dois seres que se amam, sem injunção de espécie alguma. Sem interferência do Estado, da Igreja, da família, dos fatores econômicos, etc. sem preconceitos de espécie alguma. O amor sexual é como uma florescência da vida [9]. Suas práticas são tão diversas, tão diferentes seus graus de desenvolvimento, como imenso é o campo da afetividade. Impossível reduzir o amor a uma definição concreta. Impossível determiná-lo por condições particulares fixas. Nada mais variável. O amor sexual se apresenta sempre impregnado do sabor particular de cada associação humana; sujeito a normas, formalismos e rituais que variam com o organismo social. O amor sexual desprovido de ritualismos ridículos, fórmulas jurídicas, só será possível quando a sociedade tiver superado as contradições que a impedem de resolver os problemas que afetam as necessidades básicas das pessoas.
    A história do movimento anarquista é pontilhada de extremos de paixão e lucidez [10], de amor e de heroísmo, que seria impossível registrá-los todos aqui.
    Há no ser humano um desejo inerente de ir além, de ter uma vida diferente da que vive. Há assim um ímpeto utópico. O desejo de alcançar uma realidade que ainda não existe. Há as utopias de evasão, que expressam um desejo de afastamento da realidade vivida, que denominamos fuga da realidade, e há utopias de superação, que condensam desejos de alcançar estágios superiores ainda não vividos. Para que o homem alcance uma superação constante de si mesmo (o que seria a efetivação de uma revolução permanente não só em si, como também em seu meio) é necessária uma dose de utopia, porque sem o desejo de tornar tópicos os valores mais altos é impossível estimular a criação [11]. Os que julgam que o ímpeto utópico é uma fraqueza, resultado de uma deficiência humana, pouco sabem de psicologia.
    É preciso muito sonho, muito desejo, muita crença nas possibilidades de cada um e na de todos para que possamos superar obstáculos, vencer dificuldades, construir possibilidades remotas, tornar em ato o que parecia um sonho impossível.
    A história do anarquismo é, como dissemos, partilhada por estes atos de lucidez, paixão, heroísmo e amor que sempre foram e serão muito gratificantes para os que viveram tais momentos de plenitude libertária.

Jaime Cubero( 1926- 1998), anarquista brasileiro.

Notas:

*Originalmente publicado na Revista “Libertárias”, São Paulo, nº4, Dez, p.64-68, 1998. Republicado em Eidos info-zine, Patos de Minas, nº26, Out, 2010.Disponível em:http://wwweidosinfozine.blogspot.com/2010/10/eidos-info-zine-262.html.Este artigo corresponde, em parte, a palestra proferida por Jaime Cubero na Universidade Federal de Uberlândia, em 01/12/1994, durante a inauguração do Nephispo (Núcleo de Estudos e Pesquisas em História Política), coordenado, na época, pelas professoras Christina Roquette Lopreato e Jacy Alves de Seixas. Os originais deste artigo foram preparados por José Orsi Carlos Morel.

[1] Que vão desde o espaço físico das comunidades até a ecologia de grandes regiões.

[2] Axiologia (do grego axios = valor, valia + logos = teoria) é o termo atualmente utilizado para designar a teoria do valor, que investiga a natureza, a essência e os diversos aspectos que o valor pode tomar na especulação humana. Timologia (do grego tumh´= Avaliação + logos = teoria) é a disciplina que estuda o valor da avaliação, o valor extrínseco de alguma coisa. Ambas são disciplinas regionais da Ontologia. Dizemos que alguém faz valer algo, isto é, dá-lhe um valor, valoriza. Há uma frase do grande anarquista MAX STIRNER, que tem servido de lema para muitos anarquistas individualistas “...No limiar de nossa época não está gravada a antiga inscrição apolínea conhece-te a ti mesmo mas sim a nova inscrição faze valer a ti mesmo.

[3] No plano psicológico, nossos sentidos realizam sempre uma escolha entre diversos estímulos, recebendo apenas aqueles que correspondem aos esquemas sensório-motores e aos esquemas noéticos, intelectuais ou afetivos, racionais ou emocionais. Também no plano sociológico, os processos são os mesmos, desde as escolhas realizadas pelos indivíduos, que seguem normas afetivas, como na estruturação dos grupos sociais. O valor está presente em todos os atos que praticamos.

[4] Exemplos práticos da aceitação e predominância de alguns valores sobre os outros: valores mercantis e utilitários da nossa época (padrão desde a pré-infância); “Lei do Gerson”; ter em oposição ao ser.

[5] Todas as eras da Humanidade conheceram suas escalas de valores, ora predominando uns, ora outros. A classificação de SCHELLER pode ser ampliada, como muitos o fazem, ou até mesmo INVERTIDA. Para os socialistas autoritários, os marxistas, no ápice encontram-se os valores utilitários; para os anarquistas os valores éticos prevalecem sobre os demais; para os fascistas são os valores vitais e utilitários que predominam; para os cristãos, socialistas ou não, os religiosos.

[6] Todo o potencial criativo do ser humano é despertado por um impulso apaixonado, nas infinitas variáveis de sua manifestação. O último livro publicado de ROBERTO FREIRE, “Tesudos de Todo o Mundo: Uní-vos” é rico de exemplos deste aspecto.

[7] Não podemos esquecer que são conceitos emitidos em 1889, há 106 anos, quando a total dependência da mulher e dos filhos ao homem, em qualquer união conjugal, era objeto das discussões e de acerbas críticas dos anarquistas. Uma de suas trincheiras de propaganda. Hoje, em que pese todos os avanços e conquistas, a situação não mudou muito. A paternidade responsável e a solução para o problema das dissoluções conjugais só se verifica em casos isolados.

[8] Em uma palestra, na CASA DA SOMA, sobre amor livre, abordamos o assunto, juntamente com ROBERTO FREIRE e concluímos por essa conceituação. A expressão amor libertário é de ROBERTO FREIRE, a quem considero, entre os autores anarquistas que conheço, o maior e mais profundo na abordagem do tema, em termos atuais.

[9] O amor sexual permeia e influi no comportamento humano e nas ações políticas porque é intrínseco à natureza humana e está presente na história da humanidade.

[10] Citemos, entre muitos, os nomes de Louise MICHEL e de Emma GOLDMANN, os Mártires de Chicago, BAKUNIN, entre tantos, tantos outros. Bakunin, por exemplo, nos dá a seguinte definição de revolucionário: “... é aquele que, junto à inteligência, à energia, à lealdade e ao espírito de conspiração, possua também a paixão revolucionária e o diabo no corpo.” É literalmente impossível citar aqui os exemplos que transcendem todas as ideologias.

[11] Os antigos denominavam jubileu a indulgência plenária, solene e geral, concedida pelos papas aos católicos, nos primórdios do cristianismo, porque os homens tiravam de suas costas o peso do temor do castigo pelos pecados cometidos, ao livrarem-se das culpas. O termo tomou depois outros sentidos, mas mantém o conteúdo conceitual de satisfação plena, ou seja de uma profunda alegria. Não se trata de uma alegria qualquer, como certas alegrias passageiras, que deixam atrás de si uma marca sombria, até mesmo um rastro de tristeza. Trata-se do júbilo: uma das mais belas manifestações da paixão humana. Essa alegria, esse júbilo, é sempre excitante e criador de energias. O júbilo é predominantemente da intelectualidade e da afetividade implica um gozo mais profundo das coisas que almejamos. Para o anarquista, esta é a sua grande compensação.